domingo, 13 de dezembro de 2009


Leo,

Não acredito que outro leitor do Pitadinhas vá se interessar por esta longa carta, mas alguma coisa me fez publicá-la. Há uns dois meses você me mandou um e.mail desaforado perguntando onde estavam os discos da nossa infância. Você ia para o apartamento novo e, é claro, já tinha providenciado uma vitrola zero quilômetro como rito de passagem. ”Cadê os vinis, Daniela? Ali tinha um monte de coisa importante. Tinha a obra inteira da Rita Lee!”.

Cara, você me conhece. Eu não lembro mesmo onde foram parar os LPs. Muito provavelmente, devo ter dado para alguém, num daqueles meus ataques de desapego dos quais depois me arrependo. Também nem sei se esta guarda era minha. Mais: desconfio que você, que não lembrou do acervo nos últimos 10 anos, não tinha o direito de chegar botando banca. Apesar de não ter ajoelhado no milho, a frase escrita no e.mail tem se repetido na minha cabeça mais que disco arranhado estes dias.




Quer dizer então que só ela – Rita Lee – seria capaz de resumir para meu irmão o tesouro acumulado naquelas bolachas que um dia giraram na vitrolinha do Mickey?

+++

Passei as duas últimas semanas mergulhada no universo de Rita, que hoje vai ser homenageada na 4a edição do Accenture Performances, um show que a cada ano relê a obra de um grande artista da música brasileira. Com direção musical de Nelson Motta, o espetáculo desta noite reúne Lenine, Paula Toller, Ed Motta, Marina de La Riva e Silvia Machete no palco do Citibank Hall, em São Paulo. Aqui no Rio, a apresentação acontece no dia 4 de novembro, no Vivo Rio, com uma alteração no elenco: sai Ed Motta, entra Herbert Vianna.

Tive o privilégio de participar dos bastidores dos ensaios, entrevistando os artistas e Nelson Motta para um making off. Registrei também toda a “cozinha” dos arranjos feitos pelo jovem Felipe Pinaud, talento revelado pela Orquestra Imperial, bem como o entrosamento de uma banda que mais parece um dream team e tem, entre outras jóias, Dadi no baixo; Pedro Sá e Davi Moraes nas guitarras; e o naipe de metais da Imperial nos sopros. Há ainda um quinteto de violinos, contrabaixo e violoncelo para músicas como “Lança perfume”. “Eu me dei conta que muito pouca gente gravou Rita depois dela. Isso aconteceu porque a gravação original é tão boa que seria difícil superá-la. Tinha que montar uma super banda para poder tentar fazer diferente”, diz Nelson.

Ele montou um quebra-cabeças que reverencia cada uma das grandes revoluções promovidas por Rita.

Herbert Vianna foi o único que não entrevistei, porque ele ainda não ensaiou. No show do Rio, ele vai celebrar a mãe do nosso BRock cantando “Papai me empresta o carro”, que podia muito bem ser uma música dos Paralamas. Também pediu ”Alô, alô marciano”, conhecida pela versão de Elis Regina, e a balada romântica “Desculpe o auê”.

Silvia Machete encarna a teatralidade, o humor, o circo.
Vai de ”Nem luxo nem lixo”, “Banho de espuma” e a performática “Sucesso aqui vou eu”, que fez parte de “Build up” , primeiro disco-solo de Rita e é quase um musical inteiro sintetizado numa canção. Fiquei lembrando de todos os clipes pré-MTV que vi no “Fantástico”. No papo depois do ensaio, Silvia lembrou de como as capas dos LPs da cantora traziam um pouco desta carga dramática e irreverente. Caso de “Rita Lee e Roberto de Carvalho”, de 1982, em que ela e o marido aparecem num mar fake feito de plástico azul… lindo de doer em sua artificialidade.

Uma cubana-brazuca, Marina de La Riva canta “Luz del fuego” e “Bandido Corazon”, defendendo no palco a latinidade de Rita, a ousadia de importar salsas, mambos e rumbas muito antes de os garotos dos Los Hermanos começarem a tomar mamadeira. Esta mistura com nossos vizinhos foi encampada também desta forma mais sutil, menos Mercedes Sosa e panfletária, por intérpretes como Ney Matogrosso (que, não por acaso, gravou “Bandido Corazon”).

Marina canta ainda “Menino bonito”, mostrando um pouquinho do jeito novo que Rita inventou para falar de amor: dá para se sentir enfeitiçada, olhar o menino bonito, mas ir embora “sem dizer o porquê” quando se é cigana. Dá pra dizer que “a gente faz amor por telepatia, no chão, no mar, na lua, na melodia”… Sem medo de ser feliz.

Vendo o ensaio, me dei conta de que Rita ajudou muito nossa geração a entender a revolução feminina que tinha acontecido décadas antes.

E mais: conseguiu abrandá-la, amorná-la, jogar um pouco de afeto naquela história de queimar sutiã. Eva tem duas faces – a bela e a fera. E, se “dondoca é uma espécie em extinção”, a gente continua sendo menina e gostando de rosa. Mas rosa-choque, de preferência, porque é bom não provocar.

“Rita é o nosso David Bowie. Ela quis entrar no mundo do rock pela porta da frente, queria estar ao lado dos meninos para ser como eles, cantar de igual para igual. Nunca aceitou ser uma groupie”, me disse Paula Toller depois de repassar com a banda as sensuais “Baila comigo” e “Mania de você”. Em seu tempo, Paula foi abelha-rainha que conseguiu se afirmar em meio a zangões titãs, legionários e paralâmicos. No Lego do show, encarna ainda a elegância e a sutileza. Rita é roqueira e nunca usou vestido, nem foi delicadinha. Mas canta de um jeito meio francês, meio bossa nova, sem nunca enfiar o pé na porta. A presença de Paula, de quem Rita é fã, evidencia a falsa simplicidade de ambas: ”Rita transforma tudo numa coisa muito simples, mas que nunca foi dita antes. Esta simplicidade parece fácil, mas, para chegar nela, deu um trabalho danado. É pop”, ensina Paula, com a categoria de quem já escreveu algo como “Eu tenho pressa e tanta coisa me interessa, mas nada tanto assim”… e pode ficar em paz.

Este pacote que reúne sofisticação e simplicidade conseguiu transformar Rita Lee no que Lenine chamou de “Rita Hit”:

“As primeiras 30 músicas que Nelsinho me mandou eram clássicos, não tive a menor dificuldade para escolher o que ia cantar. Mas senti falta de mais umas seis que poderiam estar no show”. No palco do Citibank Hall e do Vivo Rio, Lenine vai representar a fusão de vários estilos feita pela “ovelha negra”.

No ensaio, cantou exatamente esta música, ”Agora só falta você” , uma “Ando meio desligado” cheia de peso e “Mutante”. Esta última foi sendo revelada camada por camada. De uma Caixa de Pandora, saía um bolerinho, um progressivo, e numa outra hora a batida sutil de percussão, que levava tudo para outro lado, para a surpresa, como se cada música tivesse muitas outras dentro dela.

Ah, e ainda tem a letra. O que dizer do jogo que ela faz na mesma “Mutante” com kiss, beijo em inglês, e o verbo querer (“Kiss baby, kiss me baby, kiss me/ Pena que você não me kiss /Não me suicidei por um triz…). O papo com Ed Motta, que no show representa a complexidade melódica de Rita e Roberto de Carvalho, versou sobre o casamento perfeito dos dois, letra e música. A fase Roberto é o núcleo da obra da mulher e representa o apogeu de arranjos inacreditáveis de tão bons.

Entrevistando Ed, saí da linha me peguei cantando “Pega rapaz” para demonstrar meu espanto com um verso como “Tem tudo a ver o meu pinguim/ Com a sua geladeira”. Depois cantarolei “Flagra” (eu não tenho mesmo vergonha na cara) para lembrar de “Se a Deborah Kerr que o Gregory Peck/ Não vou bancar o santinho”.

Vivo da palavra e sei que escrever este tipo de coisa não é para qualquer um. Mas Ed, é claro, foi mais longe, mostrando, na palma da mão, como “Flagra” reproduz o ritmo das canções americanas dos anos 30 e 40, universo dos atores citados na música. A versão unplugged de ”Flagra” deixa estas caracaterísticas ainda mais claras, olha só:



Parceiro de Rita em “Colombina”, “Fora da lei” e numa terceira música, “Nefertite”, que vai estar no próximo disco dele, Ed também me falou da pauleira que deve ter sido atingir o nível melódico proposto por Rtia e Roberto nos anos 80, quando os computadores ainda não existiam nos estúdios. Os arranjos eram feitos todos na munheca, com muito suor, muito ensaio e erro. Numa “Atlântida” – cuja harmonia desce de repente algumas oitavas para mergulhar nas profundezas do oceano em “Sou um pescador que parte toda manhã/ em busca dos tesouros perdidos no fundo do mar” – atingir a perfeição era um suplício. Que Rita cumpria dando a impressão que estava indo ali na esquina, só para lixar a unha.

+++

Ah, Leo, tomar de novo este banho de espuma pop me fez entender uma coisa: se hoje ouço Adriana Calcanhotto cantar “Eu presto muita atenção no que meu irmão ouve” acreditando que ela escreveu para mim… é porque um dia existiu Rita Lee.

A mamãe não cantava para a gente por se achar desafinada, você lembra, né? Talvez então tenha cabido à coitada da Rita inventar um acalanto rock and roll que quebrasse aquele silêncio. Ela foi a voz feminina que colou nossas afinidades – a festa, a dança, o humor, a teatralidade às vezes desmedida, mas sobretudo a enorme curiosidade pelo novo, pela mistureba.

Você tem razão: tinha muita coisa importante naqueles vinis. Tinha a obra inteira da Rita Lee.

Prometo tentar recuperar cada LP, em dose dupla – um pra você, outro pra mim, sem unidunitê.

Em troca… será que você vai comigo comprar uma boa vitrola?

Ah, por favor: desculpe o auê. Eu não queria magoar você.

Te amo.

Beijos,

Dani

Nenhum comentário: